nada voltou ao normal

eram duas da manhã quando tudo aconteceu. eu tinha dormido na frente da tv, quase afundada no sofá, e estava completamente sozinha em casa. o que quer que estivesse passando na TV subitamente foi interrompido por uma sirene estridente, que quase me fez cair no chão. xingando, procurei o controle pra desligar a tv quando vi a mensagem na tela.

FIQUE EM CASA ATÉ SEGUNDA ORDEM. NÃO SAIA NEM OLHE PARA FORA. SUA SEGURANÇA DEPENDE DISSO AGORA.

eu encarei aquela mensagem por um bom tempo. a princípio, achei que fosse algum tipo de erro ou mesmo uma invasão de sinal, mas não demorou muito pra ver a mesma mensagem, palavra por palavra, em todos os outros canais.

extremamente confusa, peguei meu telefone, tentando encontrar algo na internet que explicasse aquela confusão toda. ao invés disso, fui recebida por um alerta oficial me dizendo basicamente a mesma coisa, e eu não conseguia acessar nenhum site que fosse. numa última busca por respostas, liguei um rádio, mas todas as estações que consegui sintonizar estavam transmitindo apenas uma voz robótica que lia uma mensagem semelhante.

eu não sabia o que pensar. parte de mim estava com medo e disposta a se esconder embaixo da cama se fosse ajudar, mas outra parte – a maldita curiosidade – queria abrir as cortinas do apartamento e ver o que diabos estava acontecendo lá fora. eu queria respostas, mas não sabia onde encontrá-las.

andei pela sala tentando me acalmar, mas parecia que só complicava mais. estava quase decidindo abrir as cortinas quando ouvi gritos no apartamento de cima... e em seguida, o som de uma pequena explosão. meu sangue gelou.

“eles abriram a janela”, foi a primeira coisa que pensei. “tenho certeza que ouvi a janela abrindo... mas o que foi que entrou por ela?” não estava disposta a descobrir. a mensagem na TV continuava a mesma, e eu, completamente ansiosa.

então ouvi um estouro, e lentamente tudo escureceu. a queda de energia veio acompanhada de uma gritaria insuportável na rua, como se todas as pessoas possíveis tivessem pegado fogo ao mesmo tempo – adultos, velhos, crianças, todos. um leve brilho vermelho era visível pela cortina, e os gritos ecoavam pela madrugada, gelando minha espinha. tamanho era meu nervosismo naquele momento que ouvir meu telefone tocando quase me fez infartar. era minha irmã.

“o que houve?!”

“eu vim te visitar.”

“agora?!”

“eu fui assaltada, preciso de ajuda.”

“ei ei ei, peraí, como que você saiu de casa no meio dessa confusão toda?!”

“que confusão? você deve ter sonhado.”

“não, eu tenho certeza! a televisão, o rádio e meu telefone tavam mostrando alertas de segurança e eu ouvi o maior pandemônio na rua agora pouco!”

uma risada “não, com certeza foi sonho. eu tô aqui na frente do seu prédio e a rua tá completamente deserta, só olhar pela janela que cê vai me ver.”

eu estava quase convencida e comecei a andar na direção da janela, quando me lembrei de algo.

“você foi assaltada, então?”

“isso.”

“e veio a pé dos estados unidos até aqui pra me pedir ajuda? porque três horas atrás eu vi você postando fotos das suas férias lá.”

silêncio. quem o que quer que fosse, desligou o telefone.

não sem dificuldade, arrastei alguns móveis pra frente de minha porta. em seguida, arrastei outros móveis pra frente das janelas. não demorou muito pra toda minha mobília virar uma barreira protetora, pra impedir a entrada de alguma coisa, fosse o que fosse. sentei no tapete e esperei; certamente aquilo acabaria em algum momento.

ao invés disso, novos gritos ecoavam lá fora. agora, vinham acompanhados de trovoadas e de uma chuva forte. não conseguia sair de onde estava, e respirava com enorme dificuldade.

“isso vai acabar... isso vai acabar... isso vai acabar...”

pelas frestas de minha janela, o fedor de carne queimando entrou com tudo e quase me fez vomitar; isso bastou pra que eu conseguisse sair dali e me arrastasse pelo chão, em busca de algum cômodo seguro.

“isso vai acabar... isso vai acabar... isso vai acabar...”

outros gritos, acompanhados dos sons de trovões e outras explosões. a essa altura eu tentava entender se todos aqueles sons vinham mesmo lá de fora ou se estavam ecoando na minha cabeça por conta própria.

“isso vai acabar... isso vai acabar... isso vai acabar...”

me escondi dentro do armário de meu quarto e fechei a porta. não foi a melhor das escolhas – minha respiração piorou na mesma hora – mas era o único lugar onde, ainda assim, podia me sentir minimamente segura.

“isso vai acabar... isso vai acabar... isso vai acabar...”

não conseguia mais me convencer com esse mantra. me encolhi como pude no armário, cobri os ouvidos com as mãos, e fechei os olhos, esperando por alguma coisa diferente, mas o caos continuava na rua. comecei a contar em voz alta, tentando me acalmar com isso de alguma forma, e quando cheguei em 100, não me lembro de chegar em 101.

quando abri os olhos de novo, estava esparramada no chão do quarto e com minhas pernas dentro do armário. com uma enorme dificuldade, me levantei – tudo doía. me arrastei pra sala novamente, e qual não foi minha surpresa de perceber que o dia havia clareado outra vez. a energia tinha retornado, e meus móveis não estavam mais empilhados na frente de todas as entradas.

mas a televisão continuava repetindo a mensagem da noite anterior. o rádio também.

como em um transe, andei na direção da janela. fechei os olhos.

abri as cortinas e esperei por um longo tempo, mas nada me aconteceu.

abri os olhos.

a cidade estava completamente deserta. sinais de destruição eram óbvios, e o silêncio era absurdo. tudo me dizia que eu certamente era a única que sobreviveu ao terror da noite anterior.

fechei as cortinas novamente, confirmei que minha porta estava trancada, desliguei a televisão e me deitei no sofá outra vez.

nada voltou ao normal.

april 19, 2022

“bruxa do mangue is lynn, and lynn is bruxa do mangue”